Convivência

 Na região Semiárida do Brasil, somente a partir da década de 1980/1990 as tecnologias já disponíveis, resultantes das observações, começaram a ser discutidas com os atores sociais, na perspectiva de compreender como reagem às práticas adotadas, e como transformar as histórias e ações fracassadas em comportamentos de resistência ativa orientadas pela Convivência com o Semiárido – CSA, sobretudo na escolha da agricultura apropriada e no manejo dos animais. Isso, após o processo de redemocratização do país, que com a aprovação da constituição de 1988, reconhece processos democráticos e participativos no Brasil República [1] . 
 
Em função das características da região do Semiárido Brasileiro, a estratégia para uma política de sustentabilidade baseia-se, essencialmente, na preparação e valorização dos seres humanos, instrumentalizados pela utilização da agroecologia como elemento central do paradigma da Convivência com o Semiárido na ótica do Bem Viver, viabilizadores da compreensão e resolução dos problemas que se apresentam como obstáculos à permanência plena e digna das populações em seus modos de vidas sustentáveis.
 
Segundo Silva (2006), a Convivência com o Semiárido vem se caracterizando como uma perspectiva cultural orientadora de um desenvolvimento cuja finalidade é a melhoria das condições de vida e a promoção da cidadania por meio de iniciativas socioeconômicas e tecnológicas ambientalmente apropriadas. Nesse sentido, embora esteja ainda em processo de formulação, suas propostas buscam contextualizar os princípios da sustentabilidade, possibilitando a harmonização entre a justiça social, a prudência ecológica, a eficiência econômica e a cidadania política no Semiárido brasileiro.
 
Para o IRPAA (2002), a Convivência com o Semiárido é uma proposta de desenvolvimento que se pauta na lógica de um sistema de vida e de produção eficiente e sustentável, onde se busca através da formação de uma consciência coletiva, construir um equilíbrio ambiental e social capaz de garantir melhores condições de vida às populações dessa região.
 
A convivência com o Semiárido não se trata apenas de uma estratégia de adaptação às condições climáticas adversas, mas sim de um processo de construção de um modelo de desenvolvimento mais justo e sustentável, que valorize a diversidade socioambiental do Semiárido e respeite os direitos das populações locais. Por meio da valorização da cultura local e da adoção de práticas sustentáveis, essa abordagem pode contribuir para a melhoria da qualidade de vida das pessoas do Semiárido, promovendo a conservação do meio ambiente e reduzindo a vulnerabilidade das comunidades às mudanças climáticas.
 

Nesta releitura, a partir deste estudo (COSTA, 2023), constata-se uma perspectiva de Convivência proativa como sendo algo que se refere à espécie humana e sua relação com a natureza. Os seres humanos não são sujeitos passivos às variações que ocorrem no bioma, através de todas as manifestações do clima, das atividades da crosta terrestre, etc. Têm eles a capacidade de analisar e interpretar os eventos ao seu entorno, tirar conclusões e adotar respostas efetivas. Contrário ao que ocorre com os animais que migram atrás de fontes de água, os seres humanos se adaptam ao meio; constroem tecnologias sociais de captação e armazenamento da água, por exemplo, como o caso das cisternas. A espécie humana possui cultura, que abrange o conhecimento em geral, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes, as ferramentas, as tecnologias e todos os outros hábitos e capacidades adquiridas ao longo da vida como membro de uma sociedade e trazidas para as novas gerações já com os acréscimos acumulados.

A Convivência é a base da sobrevivência para qualquer ser vivo neste planeta. Convivência é o equilíbrio entre todos os seres vivos que o compõe e a natureza inata, seja mineral, líquida ou gasosa. Este equilíbrio não é estático, são sistemas abertos com retroalimentação. Pode sair do equilíbrio, por quaisquer influências externas ou internas, mas tende a se equilibrar em um novo nível de convivência.
 
Então, se as populações tradicionais já habitavam esse espaço territorial, por qual motivo precisou materializar-se uma proposta de Convivência com o Semiárido (CSA)? O fato é que, nas regiões semiáridas (Brasil, África, etc.), colonizadas por europeus, a Convivência nunca assumiu uma dimensão política, ao contrário, os europeus impuseram seus conhecimentos, sua cultura, sua forma de produzir, desconsiderando a concepção de vida e de trabalho dessas populações.
 

Não se trata apenas da Convivência com o bioma ou com o clima, de uma proposta de acomodação, a Convivência com o Semiárido é uma relação proativa dos seres humanos em seus modos de vida locais, tradicionais e sustentáveis, respeitando os saberes, a cultura local, as trajetórias marcadas por lutas, resistências e resiliências, utilizando de conhecimentos contextualizados, tecnologias e procedimentos apropriados ao contexto ambiental e climático, construindo processos de vivência na diversidade e na harmonia entre as pessoas e a natureza, possibilitando assim, permanência na terra e melhor qualidade de vida, apesar das variações climáticas, sociais, econômicas e políticas.

A Convivência se apresenta como um projeto político contra hegemônico, exatamente sob esta perspectiva de ruptura pós-colonizadora, não apenas dos europeus, mas da sociabilidade do capital que tudo transforma em mercadoria e as relações sociais se orientam pelos valores de mercado.
 
A Convivência com o Semiárido não pode ser confundida com tecnologia, como a cisterna, pois é um processo social fruto da resistência de um povo que historicamente ficaram a margem do Estado. Hoje, a CSA é política pública que orienta a atuação do Estado na efetivação de Direitos, serviços e bens, com foco nas demandas da classe trabalhadora.
 
Não são as técnicas ou tecnologias que garantem a consolidação da Convivência com o Semiárido, mas sim, assegurar aspectos estruturantes para manutenção e desenvolvimento da vida humana, como o acesso à terra e condições para trabalhar nela, acesso à água e as tecnologias de armazenamento, e acesso ao conhecimento que perpassa pela valorização cultural, transcultural e apropriação de saberes e fazeres contextualizados. Se, por um lado, a sociedade demanda alimento, água e energia para satisfação de suas necessidades existenciais, por outro lado esta mesma sociedade exige níveis compatíveis de proteção do meio ambiente com vistas à sua condição de vida. Portanto, a terra e a água não podem ser mercadorias, e nem o conhecimento escolar e informal deve ser privado aos que têm condições de acesso: se fazem necessárias políticas públicas que assegurem as reparações necessárias na contemporaneidade.
 
Fica claro a tensão entre a tecnologia e o conhecimento, em que durante muito tempo os pacotes tecnológicos chegavam com mais intensidade do que a apropriação do conhecimento numa região com alto índices de pessoas analfabetas. A ideia da tecnologia sempre como resposta aos problemas sociais, sem a construção do conhecimento, é um processo de transferência que já era bastante praticado pelos órgãos públicos e financiadores internacionais que formavam pessoas para difundir tecnologias. Conhecimento – e não as tecnologias – é o carro chefe da CSA: Somente o conhecimento é capaz de gerar autonomia para a resolução dos problemas conforme a necessidade da população e da região. Somente com o conhecimento é possível construir uma proposta política, sendo esse o carro chefe do trabalho do IRPAA.
 

No Semiárido Brasileiro, a Convivência Proativa dos seres humanos com a natureza e as comunidades tradicionais de Fundo de Pasto, caracterizam-se como o Bem Viver no Sertão, fruto de inspirações que vêm da cosmovisão, em constante evolução, gerando os modos de vida sustentáveis numa sintonia entre o passado, o presente e o futuro, através de uma outra forma de se relacionar com a terra, sendo alternativas sistêmicas ao modelo de sociedade conservadora e depredatória em curso. Nessa perspectiva, o ser humano não deve ser o centro, e sim as totalidades da vida plena (natureza, terra, os seres humanos…), descolonizando processos num paradigma plural de convivência e sustentabilidade.

No âmbito desse estudo, compreende-se a Convivência com o Semiárido: uma relação proativa dos seres humanos em seus modos de vida locais, tradicionais e sustentáveis, respeitando os saberes, a cultura local, as trajetórias marcadas por lutas, resistências e resiliências, utilizando de conhecimentos contextualizados, tecnologias e procedimentos apropriados ao contexto ambiental e climático, construindo processos de vivência na diversidade e na harmonia entre as pessoas e a natureza, possibilitando assim, permanência na terra e melhor qualidade de vida, apesar das variações climáticas, sociais, econômicas e políticas (COSTA, 2023).
 
A visão ocidental que precisa ser descolonizada, apaga memórias, destrói o presente, esconde trajetórias, nega as minorias que ajudaram edificar uma região com características especificas, belezas raras, potencialidades adormecidas e limitações claras e estruturantes, carecendo assim de práticas que garantam: Cuidar, Valorizar e Guardar. O desafio, portanto, estar no aprender a Conviver com as diferenças, os costumes, a natureza, os seres humanos, bem como, dar voz aos silenciados, marginalizados e injustiçados.
 
A Convivência com o Semiárido – CSA não é só paradigma, é um projeto político e de mobilização social na região, e que vem se legitimando como contraponto às políticas e programas governamentais de Combate à Seca e de modernização tecnológica e conservadora. Ao longo de mais de três décadas, vem se constituindo a partir das demonstrações práticas junto às comunidades e organizações de base, implementada e assumida por vários sujeitos sociais e políticos, adotando conhecimentos contextualizadas e as tecnologias sociais e apropriadas às condições edafoclimáticas da região, tendo a agroecologia como ciência orientadora das bases epistemológicas e filosóficas, e o referencial do Bem Viver na construção de uma sociedade possível.
 
A Convivência enquanto proposta política e paradigma é a materialização de uma outra sociedade, embasada na filosofia do Bem Viver, contribuindo assim com a Felicidade Interna Bruta – FIB. Isso não é disputa de nomenclatura ou conceito, é sobretudo, disputa política e epistêmica.
 
O alcance da Convivência com o Semiárido e sua efetivação em diversas frentes, inclusive enquanto política pública, já é um forte indicativo de sua consolidação, sendo que isso só foi possível através de um processo eficiente e participativo de capacitação e qualificação dos atores envolvidos na temática e inseridos na região em questão. Eles é que estão dando algum diferencial nos rumos e na história do Semiárido Brasileiro.
 

O inédito dentre os achados é a Convivência com o Semiárido enquanto processo que gera uma consciência social e política à luz do tempo, num mundo concentracionista, tendo em sua centralidade a vida, porque viver é a arte de existir. Percebe-se que a proposta implementada fruto de um amplo processo de participação social e mudança paradigmática nessa região, aumentaram a capacidade de resiliência das famílias em relação aos períodos secos.

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[1] O período Republicano no Brasil iniciou em 1889 com o declínio da monarquia e o começo da chamada República Velha. O marco inicial desse período foi a posse do Marechal Deodoro da Fonseca, como primeiro presidente Republicano da história do Brasil.

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